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HAMLET CONTEMPORÂNEO

  • andremoraes50
  • 22 de mar. de 2021
  • 3 min de leitura

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Não sei se alguém vai estar lendo este texto futuramente ou se vou terminar de escreve-lo, amassar e jogá-lo fora. Apenas gosto de colocar no papel as variadas coisas que me acontecem, como numa espécie de diário situacional cotidiano de impressões aleatórias em que vivo. Bom, vamos ao finalmente. Certo dia assisti uma montagem de Hamlet no Teatro Municipal de São Paulo. Uma montagem completamente contemporânea que me fez sair de lá louco para dividir a experiência com alguém. Tenho um amigo de longa data, o Bruno e sempre nos reunimos no final da tarde para tomarmos uma cervejinha e colocar o papo em dia.

Eu e o Bruno somos completamente diferentes. Bruno é reservado, gosta das coisas arrumadas, planeja tudo que vai fazer - acho até que transa de meias. Brincadeiras à parte, eu sou um pouco mais despojado, adoro mudanças e ideias diferentes, sempre que surge uma oportunidade experimento coisas novas. Possuímos um antagonismo clichê de filmes de baixo orçamento.

Como era de lei, nos encontramos então no bar do Aluízio no finalzinho da tarde de uma terça feira. Bruno já estava lá, completamente irritado com o meu atraso, com a cerveja espumando no copo. Sentei e pedi para o Aluízio trazer outra cerveja que aquela, pela aparência, estava extremamente quente. Bruno me encarava com fogo nos olhos. Tudo bem vai, sei que um atraso de 2 horas é difícil de perdoar, mas estamos em uma cidade grande, super congestionada, com um transporte público que chega a dar vontade de chorar.

Munido agora de uma cervejinha estupidamente gelada, servi Bruno o mais rápido possível, levantei o copo e sugeri um brinde ao atraso, prometendo ser sempre pontual. O semblante de Bruno saiu de uma raiva total para uma gargalhada debochada enquanto levantava o copo e brindava a minha mentira.

Algumas rodadas de cerveja se passaram e finalmente tive a oportunidade de contar a minha experiência shakespeariana contemporânea de Hamlet para o Bruno. Eu realmente estava empolgado com a peça.

- Como eu estava te dizendo, Bruno. Os atores entravam no palco de rapel fazendo pirofagias. O público todo enlouquecido. No solilóquio de “Ser ou não Ser”, o ator que interpretava Hamlet, tocava uma guitarra e fazia uns movimentos hard core. Falei tão empolgado que as mesas ao redor param para me observar por um pequeno instante.

- Eu não acho que um clássico deva ser mudado dessa maneira, ainda mais de forma tão radical. Bruno falou me encarando com um ar de intelectual esnobe, com uma das mãos sobre o queixo e a outra agitando lentamente o copo de cerveja.

- Você não acha isso porque não estava lá. Quando Ofélia se afogava no rio, a plateia recebia um jato de água em todo o corpo. Eu subi no palco e comecei a recitar um soneto do próprio Shakespeare, não pude me conter.

Eu tentava a todo o momento fazer com que Bruno entrasse comigo dentro do universo do espetáculo. Confesso que sou um pouco prolixo e naquela altura da conversa e da cerveja, estava em pé gesticulando e acenando sem parar. O Bruno sempre apático dizendo que clássicos são clássicos, que não via sentido em produzir um clássico com mudanças radicais, que quando se muda um clássico, se altera o sentido que o dramaturgo quis passar e blá, blá, blá...

A todo momento eu tentava abrir a mente compacta de Bruno. Tentava explicar que a moda agora é trazer a interatividade para o espetáculo, participar da encenação, contribuir com a peça. Mas não havia a menor esperança de entendimento e aceitação por parte do Bruno. Ele permanecia irredutível.

- Flávio, querido – falava com uma calma quase angelical. Com toda certeza Shakespeare deve estar estrebuchando no túmulo com essa montagem. O maior drama da humanidade transformado em espetáculo pirofórico. Tente entender. Quando você assiste uma peça, ela tem que te lavar a refletir, te levar a algum lugar. Agora, sair de um espetáculo, molhado, amassado, não é a ideia de entretenimento que tenho na cabeça. Dizia ele já impaciente.

Na verdade, eu não acho que devemos ficar esperando que reproduzam uma peça como século passado. Se uma apresentação pode te causar experiências diversas, que seja bem-vinda. Enfim, Bruno era imutável, não entrava na cabeça dele que Hamlet poderia ser resinificado. Mas as conversas com Bruno eram assim, uma eterna discussão que não chegava a lugar algum. Pelo menos dávamos boas gargalhadas. As cervejas se acumulavam aos montes no chão. As mesas ao redor já estavam vazias e Aluízio já anunciava a "expulsadeira".

Saímos do bar tarde da noite. Shakespeare estava com as orelhas quentes aquela noite – isso se ainda tivesse algum resquício de orelha. Fomos para casa prometendo irmos há um cinema interativo, totalmente 3D. Quem sabe eu consigo convencer o Bruno a expandir um pouco mais o cabeção de pedra que ele tem.

 
 
 

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